terça-feira, 24 de junho de 2008

terça-feira, 10 de junho de 2008

microcrises - 33


Sou vítima dos comentários alheios porque faço o que tenho vontade eu não dou sastifação à ninguém. Ando pela rua com as pernas de fora e as costas à mostra para quem quiser ver. E eles olham, e os olhos deles me seguem até minhas pernas grossas entrarem no número 33 da rua dos passos. No elevador, meus seios enormes tiram a atenção dos homens e das mulheres. Sinto o desejo e a inveja e me sinto bem. No escritório, tiro os sapatos de salto fino que me elevam 15 cm do solo. Piso no carpete branco felpudo com os pés descalços e me sinto bem. Na sala do doutor Onofre, o frio piso de mármore faz os bicos dos meus seios saltarem. Já sem as calças, doutor Onofre aguarda que eu sirva o seu café-da-manhã. Mais alguns meses, jogo a marmita no lixo e só como em restaurante por quilo.

microcrises:entre o céu, o inverno e o sorvete de creme.


Imagem de Becca Jones

Deixo você ir longe, solto a pipa, fecho meu parque de diversões. Aqui de cima não vejo montanhas-russas, nem trens-fantasma. Palhaços correm atrás de criancinhas indefesas. Este não é um bom lugar para brincar. Dou linha, invento uma vida, pego o vento norte, é disso que preciso. No jogo da amarelinha, o céu e o inferno estão a um passo. O fundo é falso e sei que vou cair. Ou minhas asas são de sorvete de creme ou é o chão que atrai tudo que sobe depressa demais.

microcrises : cor de fundo



Quando nasci era transparente. Então, recebi - sem pedir ou escolher -, uma camada de tinta branca, de um branco sujo, contaminado. Esta passou a ser a minha cor de fundo, a primeira demão do que eu viria a ser. Depois, a vida me encheu de outras centenas de cores vibrantes, e vivi cada uma delas, sem nunca conseguir me livrar deste branco que não é branco, do pincel imundo que me lambeu, como se já me conhecesse. Fui amarelo uma vez: sorria flores, exalava odores e tinha todos ao meu redor, sob controle. Ganhei tons de lilás e violeta, e conquistei tudo o que desejei, mas nunca o suficiente. Nos momentos opacos, de texturas indefinidas, me escondia na terceira gaveta da cômoda do meu quarto, porque as pessoas sempre bisbilhotam a primeira gaveta, a segunda, mas nunca a terceira. Ficava ali, em silêncio na escuridão claustrofóbica, até minhas cores voltarem: um laranja, um vermelho intenso, até um azul céu era aceitável. Não por acaso, todos me viam assim, radiante e feliz porque era só isso o que eu mostrava. Ninguém sabia que carregava comigo aquele branco maculado, impregnado e encardido. Na maioria das vezes, enganava muito bem. Mas alguns, sei lá como, conseguiam ver através das minhas camadas. Separavam todas as nuances até chegar na parede desbotada que também sou eu. Nesses momentos, acuada, tinjo os olhos de negro, as unhas de vermelho , e tudo que já havia sido um começo, se tornava um fim. O que construí, passível de ser destruído. Aciono meus mecanismos automáticos de defesa e faço boca, narinas e demais orifícios do meu corpo, expelirem minha cor verdadeira, negativada por séculos de servidão e tirania. Só me resta agora também lamber com meu pincel, a essência de quem ousou se aproximar demais. A maldição assim se perpetua e meu segredo permanece seguro, ao menos por enquanto. A vida pode ser facilmente renovada com uma nova camada de tinta fresca. De preferência, em tons de rosa, porque mesmo uma alma impura precisa de um pouco de amor.