sábado, 18 de outubro de 2008

microcrises : arquivo morto

Imagem de Roberta Molteni

Memória dos milhares de rostos anônimos guardados no arquivo morto aqui dentro de mim. As vezes a procuro em lugares, dentro dos carros, em outras pessoas, mas nunca encontro. Apenas quando fecho os olhos consigo vê-la.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

microcrises :a luz azul

Imagem de Roberta Molteni

Na noite anterior, a luz azul do aparelho de som vestia teu corpo nú de tons suaves. Princesa de gelo derretendo em meus braços. Amanhã, pode não haver ninguém do outro lado. Mas hoje, neste dia sem persianas, você mudou e ainda não sabe. Dorme, dorme, dorme, ainda que tarde.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

microcrises : canibalismo



Imagem de Ann

A você reservo meus melhores defeitos. Unhas por fazer, cabelos desalinhados, vidinha de segunda mão. Não é muito mais é o que tenho. Ainda gosto de ouvir tua carne estalar sob meus dentes. É divertido. Espero você gozar sozinho mais uma vez. Sempre assim: eu como mera expectadora dos seus prazeres. Um pouco de silêncio nessa terra de ruídos . É disto que eu preciso. 

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

microcrises - direito de não querer


Imagem de Roberta Molteni

Morri na praia, mas não meu sorriso. Ela veio com palavras de consolo. E quem precisa disso? Ela talvez, eu não. Estava bem como um lagarto ao sol. Aí, sim, ficou puta de verdade e começou a meter a boca onde não era chamada, querendo tirar meu direito de não querer. Se ao invés de sugar, ela assoprasse, eu me encheria como um balão, sairia flutuando pela janela e, com sorte, um vento norte me devolveria o rumo. Mas não foi o que aconteceu. Agora, o demônio não queria só meu corpo. Levaria também minha alma leve, murcha e flácida.

microcrises : os olhos da cara


Imagem de Roberta Molteni

Meu dinheiro é bom. Todos querem. O tempo todo. Na padaria, eles oferecem pão e leite pelo meu dinheiro. Eu dou. Preciso. Multa no pára-brisa do carro. Pago por estar no lugar errado, na hora errada. O nariz escorrendo, a mão estendida me livra dos centavos. No supermercado, minha fome custa. Meus caprichos, um pouco mais. Gosto de ameixas vermelhas e de me barbear com aparelhos de três lâminas. Elas querem o meu rosto liso, sem escamas. Querem jantar, trepar, ter filhos, querem saber a marca e o modelo de tudo o que tenho. O amor custa caro. Largo emprego, tranco a casa, engulo a chave, apago a luz; desligo água, telefone, internet, tv a cabo. Nunca mais uso cartão de crédito, cheque, carteira. Como apenas o que me for oferecido: pão, água e pinga ninguém nega, ninguém rejeita. Fico quietinho, no canto do quarto, melhor dentro do armário. Paro de respirar, mas não vou resistir por muito tempo. O celular vibra no bolso da calça. Me acharam. Desta vez vou ficar devendo roupas, sapatos, respeito, os olhos da cara. Dei calote no dízimo, suspenderam minha fé. Mas milagres acontecem: sou cliente especial. Garoto de sorte. Em poucos minutos eles vão estar liberando o meu crédito. Porque meu dinheiro é bom. Bom, não. Meu dinheiro é ótimo.