domingo, 24 de fevereiro de 2008

microcrises - insônia


Auto-retrato

Relógio que faz tic-tac não me deixa dormir. Olho para o teto e não vejo nada, o quarto é puro breu. Os hotéis deveriam colocar coisas interessantes nos tetos dos quartos: frases motivacionais, histórias em quadrinhos, anúncios de refrigerante. Muita gente acorda no meio da noite e fica olhando para o teto, procurando rachaduras, saliências, ovelhas e sombras. A escuridão vira matéria-prima, massa de modelar. Vultos que se movem sem se fixar em nenhuma forma. Uma cortina de fumaça preta, correndo de um lado para o outro do quarto. Quanto mais fixo a visão, menos vejo. O manto negro parece formado por partículas estranhas, uma textura etérea que vibra muito-muito rápido. Já tive medo disso aí, mas agora não tenho mais. Nunca me fizeram nada. É como essa mulher nua na minha cama, mergulhada em seus medos mais profundos. Eu olho para ela e consigo vê-la, mas será que ela existe mesmo ou fui eu que a inventei?

microcrises : o menino


Ilustração de Mônica Oka

Assim que seus olhos se acostumarem à escuridão, o menino vai sumir e apenas eu estarei lá.

microcrises : rota circular


Imagem de Maitê Parisi

Na trama do tempo, deixava passar as horas como se fossem ônibus lotados. Sem direção alguma, seu destino era viver a perder de vista. Nada a desejar, ninguém a esperar, muito pelo contrário. Do sol da manhã, o calor. Da tarde cinza, o gelo de todas as eras. Assim corriam seus dias, em rota circular, como se isto fizesse algum sentido. Ao seu redor só inimigos. Uma lista interminável que incluia a todos, sem trégua. Só poupava um, aquele, que via refletido em lágrimas e gotas de suor. Deste tinha medo, calava, tremia, não reconhecia. De um ponto a outro sem cessar, nem santo, nem demônio, era assim, possuído.

microcrises : o ralo


Imagem de Maitê Parisi

Eu já senti essa dor antes. Sei como ela funciona. Se instala aos poucos e cresce sem que se perceba. Quando me dei conta, já era tarde demais. Senti essa dor algumas dezenas de vezes e, mesmo assim, não consegui evitá-la. É como um vírus mutante que muda de forma a cada nova infecção. Acordei com os sintomas clássicos: ansiedade misturada com indisposição; a mente se volta para o passado e não enxerga nem presente, nem futuro. A vontade de ficar na cama é enorme, o corpo todo dói por dentro, o peito se enche de um líquido negro e denso. Ao olhar no espelho do banheiro percebi que todas as veias do meio pescoço haviam saltado. Era possível vê-las sob a pele fina, como fios elétricos em tons de azul e verde, subindo pelo meu rosto, irrigando minhas têmporas. Tomei alguns comprimidos mas sabia que a tentativa era inútil. A batalha havia terminado antes mesmo de começar e eu perdi. Agora onde estou, sentado no chão do box, abraço minhas pernas e fico quieto, muito quieto. É o único jeito. Ficar aqui por um dia, um ano, um século, até que água leve tudo aquilo que não faz mais parte de mim.

microcrises : sobras



Se não for mais o médico, o engenheiro, o artista? Nem marido, namorado ou amante? Se não for mais o dono, nem o empregado, jovem e bonito? E se meu dinheiro acabar? Se não for mais o pai, o filho, o amigo, o irmão? Nem o bonzinho, nem o filho-da-puta, vítima ou assassino? Se tudo se diluir agora? O que restará de mim?

microcrises – prato feito

O que você gosta mesmo é de elogios. Aqueles bem fáceis e superficiais. Engole todos sem ao menos mastigá-los direito. Devora pratos feitos e nunca está satisfeita, porque os elogios fáceis tem um sabor intenso no início, porém dissolvem-se na boca em questão de segundos. Não leu o rótulo na embalagem? As letrinhas miúdas? Alguns elogios carregam altas doses de mentira e inveja, disfarçadas pelos tons sedutores dos corantes. Por isso são tão suculentos. Você joga os talheres para o alto e devora tudo com as mãos, dilacerando entre dentes nacos de esperança e fantasia.

microcrises - anjo vingador


Lá no fundo você não é nada disso. Nem daquilo. É uma obra imaginária, criada para enganar, ludibriar, perverter. O primeiro grande otário. Você mesmo que acredita em tudo que inventa. Ao rolar escada abaixo em busca do poder absoluto, este ser ilusório que atende pelo seu nome, vende fácil o que não pode ser comprado. O que seria desta sua existência medíocre se o anjo vingador, ao esfaquear seu coração mil vezes, esquecesse de olhar nos seus olhos e sussurrar: a sua sorte é que eu te amo.

microcrises - fantasma


O amor nunca morre. Nós é que matamos o amor. Sem nossa influência maligna ele viveria para sempre, atravessaria os séculos e as paredes como um fantasma. O amor nunca morre mas pode ser assassinado com uma única palavra, com um gesto inocente ou pela falta dele. Então, o amor se separa de nós para assombrar os amantes em noites de lua cheia. Quando o amor deixa nossos corpos, tudo passa a ter uma só cor, um só sabor e nenhum deles são nossos preferidos. Somos assassinos à solta, sem julgamento ou perdão. Ao aniquilarmos nossa capacidade de amar, nos tornamos condenados a viver essa vida rasa que troca a emoção perdida por bandeiras de cartão de crédito.