terça-feira, 10 de junho de 2008

microcrises : cor de fundo



Quando nasci era transparente. Então, recebi - sem pedir ou escolher -, uma camada de tinta branca, de um branco sujo, contaminado. Esta passou a ser a minha cor de fundo, a primeira demão do que eu viria a ser. Depois, a vida me encheu de outras centenas de cores vibrantes, e vivi cada uma delas, sem nunca conseguir me livrar deste branco que não é branco, do pincel imundo que me lambeu, como se já me conhecesse. Fui amarelo uma vez: sorria flores, exalava odores e tinha todos ao meu redor, sob controle. Ganhei tons de lilás e violeta, e conquistei tudo o que desejei, mas nunca o suficiente. Nos momentos opacos, de texturas indefinidas, me escondia na terceira gaveta da cômoda do meu quarto, porque as pessoas sempre bisbilhotam a primeira gaveta, a segunda, mas nunca a terceira. Ficava ali, em silêncio na escuridão claustrofóbica, até minhas cores voltarem: um laranja, um vermelho intenso, até um azul céu era aceitável. Não por acaso, todos me viam assim, radiante e feliz porque era só isso o que eu mostrava. Ninguém sabia que carregava comigo aquele branco maculado, impregnado e encardido. Na maioria das vezes, enganava muito bem. Mas alguns, sei lá como, conseguiam ver através das minhas camadas. Separavam todas as nuances até chegar na parede desbotada que também sou eu. Nesses momentos, acuada, tinjo os olhos de negro, as unhas de vermelho , e tudo que já havia sido um começo, se tornava um fim. O que construí, passível de ser destruído. Aciono meus mecanismos automáticos de defesa e faço boca, narinas e demais orifícios do meu corpo, expelirem minha cor verdadeira, negativada por séculos de servidão e tirania. Só me resta agora também lamber com meu pincel, a essência de quem ousou se aproximar demais. A maldição assim se perpetua e meu segredo permanece seguro, ao menos por enquanto. A vida pode ser facilmente renovada com uma nova camada de tinta fresca. De preferência, em tons de rosa, porque mesmo uma alma impura precisa de um pouco de amor.

Um comentário:

Lara disse...

Ai Sé, amei todos os que eu li!!!!

Saudades.

beijos, Carol