Aqui é tão seguro e protegido. Mas eu preciso de algo novo. Sinto as dores do parto, mas não sei ainda o que está para nascer. Quando souber, eu conto. Não. Melhor você descobrir sozinho.
quarta-feira, 24 de dezembro de 2008
terça-feira, 23 de dezembro de 2008
quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
microcrises : ícaro
Entre o inferno e o inferno é fácil decidir. A dor é o único caminho. Não adianta olhar para os lados em busca de algo firme. Tudo é ilusório, sem forma, vil. Neste momento onde só queremos um sim, nos tornamos amantes da dor e do sofrimento. Escravos da ignorância. Lá do alto as asas derrentem lentamente. Não tenha medo, o melhor a fazer agora é cair.
terça-feira, 16 de dezembro de 2008
microcrises : amor não é para os fracos
Imagem Padma Chime
O amor não é para os fracos. Abro meu coração em mil pedaços enquanto você procura soluções em frascos. Falo de novos começos mas seus olhos ainda estão no passado. Outra vez o chão se abre e eu nem ligo. Minhas asas são como uma couraça de aço.
sábado, 13 de dezembro de 2008
microcrises : filme b
Tem uma coisa que não sai da minha cabeça. Ela fica rodando o dia todo dentro de mim. Ela se divide em duas e se desloca para um ponto no centro do peito. Aí se divide de novo e vai chafurdar nos meus intestinos. As vezes, essa coisa se junta inteira e se aninha na garganta. Mal consigo falar, fico sem ar, acho que vou morrer. Acabo pegando no sono e quando acordo a coisa não está. Isso dura pouco. Lentamente vai se instalando no meu corpo e me domina. Porém, quando você está perto de mim, a coisa pára, a coisa some. Das duas, uma: ou ela tem medo de você ou (meu Deus!) você é a coisa.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2008
microcrises : sem tetos
Nos braços de quem você já se sentiu em casa? Amor de toda uma vida. Simples assim. Enquanto não encontramos ficamos à deriva, entrando e saindo de colônias de férias. Tudo muito divertido, mas você sabe que um dia vai ter de voltar. Voltar pra onde? Se achamos e perdemos vamos passar todos os nossos dias enviando cartas para uma casa demolida. Amor que não exite mais. Então, é importante, tente se lembrar: nos braços de quem você já encontrou um lar?
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
domingo, 30 de novembro de 2008
microcrises : paisagem
Alguém sempre vai. E quem fica na verdade está indo também. Cada um na sua viagem interna rumo ao desconhecido. Meus medos são os mesmos dos meus ancestrais. Amo você apenas quando você faz o que eu quero. É fácil viver só hoje em dia, abrindo janelas e mais janelas sem apreciar a paisagem.
sábado, 29 de novembro de 2008
microcrises :a casa
Levo minha casa para todo canto. Ninguém percebe mas ela está sempre lá comigo. Minha casa não tem teto nem paredes. Ela está onde eu estou. Vai onde vou. Tenho casa na praia, na montanha, no Hawaí, no Himalaia. As vezes, quando converso com alguém,assim cara a cara, a pessoa me chama como se eu não estivesse alí. As vezes acontece de eu voltar pra casa sem avisar ou me despedir. É um pouco grosseiro isso, mas não consigo evitar. Porque minha casa é o melhor lugar do mundo mas só abriga a mim. Não tem quartos, banheiro,cozinha. Nem varanda, closet ou área de serviço. Tem sim uma única sala, uma única porta e eu sou o único que tem a chave. E isso não é nada bom. Deus me livre se me acontece algo e eu aqui trancado por dentro.
quarta-feira, 12 de novembro de 2008
microcrises: tão
Tudo parece tão importante, tão necessário, tão urgente, tão preciso. Aí, a luz acaba, o carro derrapa, a bala parte, o chão treme e tudo, tudo, tudo volta à realidade.
sexta-feira, 31 de outubro de 2008
quarta-feira, 22 de outubro de 2008
sábado, 18 de outubro de 2008
microcrises : arquivo morto
terça-feira, 14 de outubro de 2008
segunda-feira, 13 de outubro de 2008
microcrises :a luz azul
Na noite anterior, a luz azul do aparelho de som vestia teu corpo nú de tons suaves. Princesa de gelo derretendo em meus braços. Amanhã, pode não haver ninguém do outro lado. Mas hoje, neste dia sem persianas, você mudou e ainda não sabe. Dorme, dorme, dorme, ainda que tarde.
terça-feira, 7 de outubro de 2008
microcrises : canibalismo
Imagem de Ann
A você reservo meus melhores defeitos. Unhas por fazer, cabelos desalinhados, vidinha de segunda mão. Não é muito mais é o que tenho. Ainda gosto de ouvir tua carne estalar sob meus dentes. É divertido. Espero você gozar sozinho mais uma vez. Sempre assim: eu como mera expectadora dos seus prazeres. Um pouco de silêncio nessa terra de ruídos . É disto que eu preciso. quinta-feira, 2 de outubro de 2008
microcrises - direito de não querer
Imagem de Roberta Molteni
Morri na praia, mas não meu sorriso. Ela veio com palavras de consolo. E quem precisa disso? Ela talvez, eu não. Estava bem como um lagarto ao sol. Aí, sim, ficou puta de verdade e começou a meter a boca onde não era chamada, querendo tirar meu direito de não querer. Se ao invés de sugar, ela assoprasse, eu me encheria como um balão, sairia flutuando pela janela e, com sorte, um vento norte me devolveria o rumo. Mas não foi o que aconteceu. Agora, o demônio não queria só meu corpo. Levaria também minha alma leve, murcha e flácida.
microcrises : os olhos da cara
Imagem de Roberta Molteni
Meu dinheiro é bom. Todos querem. O tempo todo. Na padaria, eles oferecem pão e leite pelo meu dinheiro. Eu dou. Preciso. Multa no pára-brisa do carro. Pago por estar no lugar errado, na hora errada. O nariz escorrendo, a mão estendida me livra dos centavos. No supermercado, minha fome custa. Meus caprichos, um pouco mais. Gosto de ameixas vermelhas e de me barbear com aparelhos de três lâminas. Elas querem o meu rosto liso, sem escamas. Querem jantar, trepar, ter filhos, querem saber a marca e o modelo de tudo o que tenho. O amor custa caro. Largo emprego, tranco a casa, engulo a chave, apago a luz; desligo água, telefone, internet, tv a cabo. Nunca mais uso cartão de crédito, cheque, carteira. Como apenas o que me for oferecido: pão, água e pinga ninguém nega, ninguém rejeita. Fico quietinho, no canto do quarto, melhor dentro do armário. Paro de respirar, mas não vou resistir por muito tempo. O celular vibra no bolso da calça. Me acharam. Desta vez vou ficar devendo roupas, sapatos, respeito, os olhos da cara. Dei calote no dízimo, suspenderam minha fé. Mas milagres acontecem: sou cliente especial. Garoto de sorte. Em poucos minutos eles vão estar liberando o meu crédito. Porque meu dinheiro é bom. Bom, não. Meu dinheiro é ótimo.
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
quinta-feira, 21 de agosto de 2008
microcrises:contágio
Imagem de Lorena Hollander
Eu não queria que vc fosse embora, mas vc foi. Então, porque diabo continua aqui, a assombrar meus silêncios? Já desfiz laços e sorrisos. Pus abaixo nosso abrigo, joguei no rio profundo o que foi dito. Então, o que faz aqui ainda procurando nos meus olhos algo de mim que nunca mais será seu? Talvez seja este mau humor contagiante, que traz para perto o que quero distante e alimenta os fantasmas que eu mesmo criei.
quarta-feira, 20 de agosto de 2008
microcrises : barreira de nuvens
Ouvi relatos de outros que tentaram e fracassaram, todos eles, um a um. Mas eu me julgava diferente. Me sentia especial. A própria montanha transmitia este sentimento, ao me acolher sempre que conseguia avançar alguns poucos metros. Mas era tudo uma grande farsa. Quanto mais subia e me aproximava do meu objetivo, mais exposto ficava ao frio e o ar rarefeito. Minhas esperanças congelaram, perdi todos os suprimentos e recursos emocionais. Fiquei dias pendurado imóvel, de cabeça para baixo, para que o sangue quente não abandonasse meu corpo. Insisti por ser fiel ao que acreditava, mas nada é o que parece. A montanha agora havia se transformando em um gigantesco iceberg. Uma massa disforme, dissimulada e fascinante; a mentira mais perfeita e cruel de todas. Os jornais disseram que eu desisti. A TV mostrou, em uma animação 3D, o ponto exato onde escorreguei. Fui dado como morto e nunca acharam meu corpo. Apenas os pássaros que conseguem atravessar a barreira de nuvens podem ver a minha bandeira fincada no ponto mais alto que um grande amor pode chegar.
terça-feira, 24 de junho de 2008
terça-feira, 10 de junho de 2008
microcrises - 33
Sou vítima dos comentários alheios porque faço o que tenho vontade eu não dou sastifação à ninguém. Ando pela rua com as pernas de fora e as costas à mostra para quem quiser ver. E eles olham, e os olhos deles me seguem até minhas pernas grossas entrarem no número 33 da rua dos passos. No elevador, meus seios enormes tiram a atenção dos homens e das mulheres. Sinto o desejo e a inveja e me sinto bem. No escritório, tiro os sapatos de salto fino que me elevam 15 cm do solo. Piso no carpete branco felpudo com os pés descalços e me sinto bem. Na sala do doutor Onofre, o frio piso de mármore faz os bicos dos meus seios saltarem. Já sem as calças, doutor Onofre aguarda que eu sirva o seu café-da-manhã. Mais alguns meses, jogo a marmita no lixo e só como em restaurante por quilo.
microcrises:entre o céu, o inverno e o sorvete de creme.
Imagem de Becca Jones
Deixo você ir longe, solto a pipa, fecho meu parque de diversões. Aqui de cima não vejo montanhas-russas, nem trens-fantasma. Palhaços correm atrás de criancinhas indefesas. Este não é um bom lugar para brincar. Dou linha, invento uma vida, pego o vento norte, é disso que preciso. No jogo da amarelinha, o céu e o inferno estão a um passo. O fundo é falso e sei que vou cair. Ou minhas asas são de sorvete de creme ou é o chão que atrai tudo que sobe depressa demais.
microcrises : cor de fundo
Quando nasci era transparente. Então, recebi - sem pedir ou escolher -, uma camada de tinta branca, de um branco sujo, contaminado. Esta passou a ser a minha cor de fundo, a primeira demão do que eu viria a ser. Depois, a vida me encheu de outras centenas de cores vibrantes, e vivi cada uma delas, sem nunca conseguir me livrar deste branco que não é branco, do pincel imundo que me lambeu, como se já me conhecesse. Fui amarelo uma vez: sorria flores, exalava odores e tinha todos ao meu redor, sob controle. Ganhei tons de lilás e violeta, e conquistei tudo o que desejei, mas nunca o suficiente. Nos momentos opacos, de texturas indefinidas, me escondia na terceira gaveta da cômoda do meu quarto, porque as pessoas sempre bisbilhotam a primeira gaveta, a segunda, mas nunca a terceira. Ficava ali, em silêncio na escuridão claustrofóbica, até minhas cores voltarem: um laranja, um vermelho intenso, até um azul céu era aceitável. Não por acaso, todos me viam assim, radiante e feliz porque era só isso o que eu mostrava. Ninguém sabia que carregava comigo aquele branco maculado, impregnado e encardido. Na maioria das vezes, enganava muito bem. Mas alguns, sei lá como, conseguiam ver através das minhas camadas. Separavam todas as nuances até chegar na parede desbotada que também sou eu. Nesses momentos, acuada, tinjo os olhos de negro, as unhas de vermelho , e tudo que já havia sido um começo, se tornava um fim. O que construí, passível de ser destruído. Aciono meus mecanismos automáticos de defesa e faço boca, narinas e demais orifícios do meu corpo, expelirem minha cor verdadeira, negativada por séculos de servidão e tirania. Só me resta agora também lamber com meu pincel, a essência de quem ousou se aproximar demais. A maldição assim se perpetua e meu segredo permanece seguro, ao menos por enquanto. A vida pode ser facilmente renovada com uma nova camada de tinta fresca. De preferência, em tons de rosa, porque mesmo uma alma impura precisa de um pouco de amor.
segunda-feira, 26 de maio de 2008
microcrises : capote
Enquanto meu coração pulsava exposto sobre a mesa, ela se comportava como um eletrodoméstico. Algo muito parecido com um ser humano, sem ser. O olhar frio construía mais um punhal de gelo. Mas havia pouco de mim alí para ser ferido. Recolhi meus restos e saí batendo porta, a centenas de quilômetros por hora. Só queria me afastar o mais rápido possível. Na pressa, nem vi a casca de banana que sempre cruza o meu caminho quando tudo fica sério e pesado demais.
sábado, 24 de maio de 2008
segunda-feira, 28 de abril de 2008
microcrises : realidades delirantes
Imagem de Luisão Pereira
Algo que percorre todo meu corpo não pode ser nada de absoluto. Mesmo sendo livre para escolher eu não o faço. Fico a imaginar navios fantasmas e realidades delirantes. A vida prática é tão mais fácil. Por que então ela nunca me diverte? Comprei algo novo hoje de manhã mas, após o almoço, já me sentia um velho.
sábado, 12 de abril de 2008
microcrises : borboletas e gafanhotos
Imagem de Daniela Cruz
Ao te ver sangrar até os olhos encherem d’água, no momento em que a dor dissolve tudo em que acredito, me despeço do rancor e da memória dos tempos. Quando o suor do teu corpo desenha no meu corpo, borboletas e gafanhotos. E se isto te traz a mim quase que por engano, o que fazer? Abraça-me com a intensidade dos começos, enquanto giro sobre meu próprio eixo, até perder o chão. Inseto na luz, a rodopiar feito um satélite em volta de ti, amor. O que restará de mim depois que você se for?
Ao te ver sangrar até os olhos encherem d’água, no momento em que a dor dissolve tudo em que acredito, me despeço do rancor e da memória dos tempos. Quando o suor do teu corpo desenha no meu corpo, borboletas e gafanhotos. E se isto te traz a mim quase que por engano, o que fazer? Abraça-me com a intensidade dos começos, enquanto giro sobre meu próprio eixo, até perder o chão. Inseto na luz, a rodopiar feito um satélite em volta de ti, amor. O que restará de mim depois que você se for?
microcrises : tic-tac
Imagem de Diego Paris
Quando não tenho nada pra fazer eu não faço. Mas aí tem sempre um que vem com idéia que não consegue guardar para si. Gente que não consegue parar, absolutamente. De onde eu venho, as luas giram no sentindo contrário ao do sol. O tempo não vitimiza ninguém. Mas aqui, me sinto culpado de olhar para o nada de onde vim e para onde voltarei. Não vejo a hora, nem os relógios.
segunda-feira, 7 de abril de 2008
microcrises : última chance
Imagem de Amandy Gibbons
Sim , esta foi minha última chance. Apesar da pouco idade, reconheço quando o fim está próximo. Algo muda no céu, o ar descarrega partículas elétricas que vibram de forma aleatória. Sinais se revelam simultaneamente, explodem como pipoca no microondas. Vejo, ao acordar, que a luz da manhã está diferente, que o café não tem o mesmo gosto, que a porta de saída se afasta a cada passo que dou em direção a ela. O corredor se alonga até virar uma estrada estreita e pouco iluminada. O telefone toca, não atendo. O telefone toca de novo e de novo e de novo, enquanto eu continuo dando sinal de ocupado. Meu peito vibra de ansiedade. Não tenho medo de dinossauros, mamutes ou de tigres de dentes de sabre. Tenho sim pavor do que me acorrenta à essa vida ordinária. Amarras invisíveis que ora me aproximam, ora me afastam deste jogo perverso de querer ser feliz a todo custo.
quinta-feira, 3 de abril de 2008
segunda-feira, 31 de março de 2008
microcrises : mais um recorde
Andava tropicando pela rua, o olhar baixo, fixo no bico do tênis, nas ranhuras da calçada. Bitucas de cigarro, papel de bala, merda de cachorro. Seu mundo ficava alguns centímetros abaixo da linha do horizonte. Não raro esbarrava em alguém ou em alguma coisa. Como aquela vez que deu com a testa num poste. O impacto foi suficiente para lhe tirar algumas gotas de sangue, mas não o bastante para derrubá-lo. Ficou ali, a testa grudada no concreto, os braços largados ao longo do corpo. Foram dezoito minutos e quarenta e dois segundos cravados na mesma posição. Mais um recorde. Depois que ganhou relógio com cronômetro, pegou essa mania de dar valor e medida ao tempo. Menino estranho.
quarta-feira, 26 de março de 2008
quinta-feira, 20 de março de 2008
quarta-feira, 19 de março de 2008
microcrises : fixos e móveis
Ilustração de Mônica Oka
Era contra celulares como alguém é contra a pena de morte ou a liberação do aborto. Não tinha um e não ligava para os dos outros. Preferia os fixos aos móveis. Passou a vida cultivando raizes e dando adeus aos balões de gás. Quando flutuou em paixões, uma ou duas vezes, cuidou da medida segura dos fios, da firmeza dos nós e das amarras. Nunca passou dos limites. Nunca excedeu. Tampouco alcançou o amor, porque este estava sempre muito além do que poderia suportar.
sexta-feira, 14 de março de 2008
quinta-feira, 13 de março de 2008
quarta-feira, 12 de março de 2008
microcrises : todos os lados
Uma ilha, eu, cercado por mim mesmo a ponto de não mais me suportar. Até que você chegou e mudou tudo. Me resgatou do egoísmo dos que vivem só. Preencheu meus espaços com sua imensidão de olhares, carinhos e sorrisos. Mergulhei, então, no seu profundo azul de menino e, quando voltei, já era eu homem feito, cercado de amor por todos os lados.
segunda-feira, 10 de março de 2008
sexta-feira, 7 de março de 2008
quinta-feira, 6 de março de 2008
microcrises : o amor que nunca foi
Ilustração de Mônica Oka
O amor que nunca foi é aquele que não se completa. Fica como uma espinha de peixe atrevessada na garganta. Antigamente, as pessoas morriam desse jeito. Hoje não se vê isso nos jornais. Então, o amor que nunca foi sobrevive. Não é uma amor platônico. É real, existe, mas por algum motivo nunca chega lá. Um amor sem fôlego, confortável, indolente. Qualidade de amor das mas baixas, um amor de fim de feira. Sempre falta uma peça neste amor. É um amor que não se encaixa. O amor que nunca foi até parece amor, mas é só um quase.
quarta-feira, 5 de março de 2008
microcrises : vampiros
Suga tudo o que tenho de melhor. Inveja secreta que faz o mundo ao meu redor esvanecer. Vem com esse seu sorriso de quem não suporta ser odiada, e suga tudo o que tenho de mais puro. Se alimenta de mim, sem dar nada em troca, tampouco a vida eterna. Esta é a sua regra e a minha vingança: nunca conseguirá amar a nada nem a ninguém. E que viva assim para todo o sempre.
microcrises : capachos
O capacho gosta de ser capacho porque tem vocação. Conhece as solas dos tênis, chinelos e sapatos. Aceita a sujeira que vem das ruas, toda a merda que os homens carregam sob si próprios. Os capachos têm vidas medíocres de capacho e criam seus filhos para também serem capachos um dia. Eles aprendem a recolher migalhas, absorver urina, porém nunca se rebaixam porque já estão no chão. O lugar dos capachos.
microcrises : retaliação
O quanto consigo suportar a humilhação de ser menos do que já fui. Quando seus olhos passam sobre mim às avessas, transformando bom em ruim, amor em ódio, fé em leviandade. Dos pontos onde tracei meu destino, nada ficou. A não ser o desejo incontrolável de lançar mísseis teleguiados para te alcançarem, onde você estiver.
microcrises : a fada do medo
A fada do medo veio me visitar. Perguntou se eu era importante: rei, rainha, príncipe, princesa. Mas eu não era nada disso. Ela deu um ufa de alívio e fez cair os véus que lhe cobriam os seios. Seios mágicos. Então, a fada do medo me pegou pela mão e me guiou entre suas pernas.
domingo, 24 de fevereiro de 2008
microcrises - insônia
Auto-retrato
Relógio que faz tic-tac não me deixa dormir. Olho para o teto e não vejo nada, o quarto é puro breu. Os hotéis deveriam colocar coisas interessantes nos tetos dos quartos: frases motivacionais, histórias em quadrinhos, anúncios de refrigerante. Muita gente acorda no meio da noite e fica olhando para o teto, procurando rachaduras, saliências, ovelhas e sombras. A escuridão vira matéria-prima, massa de modelar. Vultos que se movem sem se fixar em nenhuma forma. Uma cortina de fumaça preta, correndo de um lado para o outro do quarto. Quanto mais fixo a visão, menos vejo. O manto negro parece formado por partículas estranhas, uma textura etérea que vibra muito-muito rápido. Já tive medo disso aí, mas agora não tenho mais. Nunca me fizeram nada. É como essa mulher nua na minha cama, mergulhada em seus medos mais profundos. Eu olho para ela e consigo vê-la, mas será que ela existe mesmo ou fui eu que a inventei?
microcrises : rota circular
Imagem de Maitê Parisi
Na trama do tempo, deixava passar as horas como se fossem ônibus lotados. Sem direção alguma, seu destino era viver a perder de vista. Nada a desejar, ninguém a esperar, muito pelo contrário. Do sol da manhã, o calor. Da tarde cinza, o gelo de todas as eras. Assim corriam seus dias, em rota circular, como se isto fizesse algum sentido. Ao seu redor só inimigos. Uma lista interminável que incluia a todos, sem trégua. Só poupava um, aquele, que via refletido em lágrimas e gotas de suor. Deste tinha medo, calava, tremia, não reconhecia. De um ponto a outro sem cessar, nem santo, nem demônio, era assim, possuído.
Na trama do tempo, deixava passar as horas como se fossem ônibus lotados. Sem direção alguma, seu destino era viver a perder de vista. Nada a desejar, ninguém a esperar, muito pelo contrário. Do sol da manhã, o calor. Da tarde cinza, o gelo de todas as eras. Assim corriam seus dias, em rota circular, como se isto fizesse algum sentido. Ao seu redor só inimigos. Uma lista interminável que incluia a todos, sem trégua. Só poupava um, aquele, que via refletido em lágrimas e gotas de suor. Deste tinha medo, calava, tremia, não reconhecia. De um ponto a outro sem cessar, nem santo, nem demônio, era assim, possuído.
microcrises : o ralo
Imagem de Maitê Parisi
Eu já senti essa dor antes. Sei como ela funciona. Se instala aos poucos e cresce sem que se perceba. Quando me dei conta, já era tarde demais. Senti essa dor algumas dezenas de vezes e, mesmo assim, não consegui evitá-la. É como um vírus mutante que muda de forma a cada nova infecção. Acordei com os sintomas clássicos: ansiedade misturada com indisposição; a mente se volta para o passado e não enxerga nem presente, nem futuro. A vontade de ficar na cama é enorme, o corpo todo dói por dentro, o peito se enche de um líquido negro e denso. Ao olhar no espelho do banheiro percebi que todas as veias do meio pescoço haviam saltado. Era possível vê-las sob a pele fina, como fios elétricos em tons de azul e verde, subindo pelo meu rosto, irrigando minhas têmporas. Tomei alguns comprimidos mas sabia que a tentativa era inútil. A batalha havia terminado antes mesmo de começar e eu perdi. Agora onde estou, sentado no chão do box, abraço minhas pernas e fico quieto, muito quieto. É o único jeito. Ficar aqui por um dia, um ano, um século, até que água leve tudo aquilo que não faz mais parte de mim.
microcrises : sobras
Se não for mais o médico, o engenheiro, o artista? Nem marido, namorado ou amante? Se não for mais o dono, nem o empregado, jovem e bonito? E se meu dinheiro acabar? Se não for mais o pai, o filho, o amigo, o irmão? Nem o bonzinho, nem o filho-da-puta, vítima ou assassino? Se tudo se diluir agora? O que restará de mim?
microcrises – prato feito
O que você gosta mesmo é de elogios. Aqueles bem fáceis e superficiais. Engole todos sem ao menos mastigá-los direito. Devora pratos feitos e nunca está satisfeita, porque os elogios fáceis tem um sabor intenso no início, porém dissolvem-se na boca em questão de segundos. Não leu o rótulo na embalagem? As letrinhas miúdas? Alguns elogios carregam altas doses de mentira e inveja, disfarçadas pelos tons sedutores dos corantes. Por isso são tão suculentos. Você joga os talheres para o alto e devora tudo com as mãos, dilacerando entre dentes nacos de esperança e fantasia.
microcrises - anjo vingador
Lá no fundo você não é nada disso. Nem daquilo. É uma obra imaginária, criada para enganar, ludibriar, perverter. O primeiro grande otário. Você mesmo que acredita em tudo que inventa. Ao rolar escada abaixo em busca do poder absoluto, este ser ilusório que atende pelo seu nome, vende fácil o que não pode ser comprado. O que seria desta sua existência medíocre se o anjo vingador, ao esfaquear seu coração mil vezes, esquecesse de olhar nos seus olhos e sussurrar: a sua sorte é que eu te amo.
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